Amanhã é sempre longe demais

Talvez não seja o dito, o visível, que nos deva preocupar, mas o que se esconde, o que se omite, o que se renega.

Aprende-se isso quando se tem a felicidade de ter bons mestres em jornalismo. Aprendia-se isso quando o aparelho político-económico não dominava os media como se fossem apenas mais um setor económico, porém com tiques especiais no que toca aos critérios de produção (de notícias e reportagens, ou como usa dizer-se agora: conteúdos).

Ao aparelho (também ideológico) interessam números, casos, escândalos, fait divers. E há-os todos os dias, para alimentar milhares de pessoas que vêem e ouvem nas TVs esses pratos servidos generosamente. Os quatro principais canais de TV, um dos quais pago por todos nós para prestar sobretudo ‘serviço público’, são prolixos no lixo que entregam de bandeja como se fosse gourmet.

É tudo mau? Não, não é – felizmente. Há excelentes repórteres e editores que, por entre as malhas da guerra de audiências, libertam boas peças de jornalismo. Profissionais com consciência do que fazem e, sobretudo, que sabem para quem trabalham: o público, as pessoas, o povo. E desses espera-se que afastem a cortina dos discursos oficiais e mergulhem na realidade.

Em Portugal falamos, anualmente, das mulheres mortas às mãos de companheiros ou antigos parceiros, pessoas com quem (es)tiveram relações próximas ou de intimidade. A essas mortes chama-se femicídio – o assassinato de mulheres apenas porque são…mulheres.

Essas mulheres assassinadas deixam filhos, irmãos, pais, e amigos/as, pessoas que vivem e viverão, por longo tempo, com a dor da perda e da tragédia que a motivou. E há também os órfãos, largas centenas; e ainda os pais que perderam as filhas, as amigas que perderam amigas, trabalhadores que perderam colegas, vizinhos sem vizinhas, enfim, um lote de perdas incomensurável, cruel, sem perdão.

Para lá das 503 mulheres assassinadas em contexto de violência doméstica nos últimos 15 anos, há as outras. As que escaparam por um triz, as que acreditam que um dia as agressões vão acabar, que ele vai mudar. As que se escondem para não enlouquecerem com os berros do seu homem, ou com o seu desprezo e apoucamento. E as que querem sair do ciclo de violência e não sabem como, não sabem se são fortes qb, não sabem a quem recorrer, não sabem se vale a pena contrariar uma sina que já foi das suas mães e avós.

E há ainda as que todas as noites choram baixinho, ou disfarçam a insónia, feita de um quotidiano de pavor, com um sono falso, para ver se não sofrem mais uma violação no seio do casamento (ou dentro da família). E as que despistam a depressão crónica com dores de cabeça frequentes e aflições superlativas com os miúdos. As que adiam sucessivamente o café com o chefe no bar daquele hotel onde nunca puseram os pés. As que sentem o homem do lado roçar nelas ostensivamente, apenas porque estão ao lado, no mesmo banco de autocarro. As que estão cansadas de ouvir piropos em série por serem “jeitosas ou oferecidas”, ou as duas coisas. As que levam surras porque ele bebeu ou tão só porque está chateado porque não bebeu e o clube perdeu.

Afinal de contas, todos os pretextos são bons para agredir uma mulher. E esta coisa de desigualdade entre homens e mulheres têm uma origem tão antiga que pouca gente sabe como começou. Foi provavelmente há milhares de anos, quando se instalou a propriedade privada e o Estado. Mas isso seria uma outra história. Esta termina aqui: mulher pode ser independente e soberana de si, apesar de se sentir injustiçada, discriminada ou abusada; tem mais é que se encher de coragem – como quem respira muito fundo -, pedir apoio e dar o seu grito de Ipiranga. Porque amanhã é sempre longe demais.

Luisa Rego

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