Na tradição artística as mulheres surgem prioritariamente, não como pintoras, mas como musas, mudas, nuas e de preferência mortas, como a Beatriz de Dante . Musas, inclusive, da chamada representação heróica da violação, estudada pela historiadora de arte Diane Wolfthal, cuja obra cita como exemplo dessa temática o quadro “O rapto das Sabinas”, de Nicolas Poussin, o qual retrata um episódio de violação colectiva como um mito heróico de fundação de um povo.
Era comum a representação artística de outras violações mitológicas de forma heróica e naturalizada, como os vários episódios envolvendo Zeus e uma mortal, cujo exemplo principal, segundo a autora, seria a Primavera de Botticelli, e em que é possível ver Zefiros, a divindade dos ventos, assediando a ninfa Chloris. Segundo narrado por Ovídio, Zefiros se casa com Chloris após violá-la, o que ilustra mais uma vez a anulação e justificação da violência sexual pelo casamento e nos remete ao instituto do casamento-remédio, até pouco tempo legalizado em Portugal.
Ademais foram criadas versões alteradas dos mitos, de forma a romantizá-los, tendo como exemplo a pintura Jupiter e Io de Correggio, na qual o artista elimina os traços de violência do ato de violação ao enfatizar o olhar de Io, que exibe mais êxtase que dor, o que representaria o triunfo da virilidade masculina e a ideia de sedução como um eufemismo para assédio e coerção. Assim, a representação heróica da violação construiu a visão no imaginário sexual atual de que as mulheres dizem não quando na verdade querem dizer sim, além de naturalizar e glamourizar a violação.
Somado a isso, é difícil, mesmo aos mais argutos desconstrutores dos discursos, ultrapassar esse modelo de mulheres tidas apenas como musas, nunca como pintoras. A título ilustrativo, em 1985 só 5% dxs artistas do The Metropolitan Museum of Art de Nova York eram mulheres, enquanto 85% dos nus eram femininos. Atualmente essa ínfima representatividade feminina não mudou muito. Contudo, pela primeira vez, em seus 200 anos de historia, o museu do Prado, em Madrid, o qual conta com mais de 5.000 obras de homens frente a apenas 41 obras de mulheres, inaugurou uma exposição temática exclusiva sobre uma mulher: Clara Peeters, pioneira em natureza morta no século XVII, a qual escondia pequenos autorretratos em seus quadros. Um modo de refletir que a arte tem rosto e nome de mulher, e que as mulheres não são necessariamente musas, definitivamente não são mudas e muito menos estão mortas. Pelo contrário, estão vivas, tem voz, e querem ser ouvidas.
Ana Luiza Tinoco