Invisíveis e mudas. Invisíveis porque as não vêem e mudas porque as não ouvem.
A história do povo cigano é a “história de um povo itinerante que chegou aos Balcãs nos tempos medievais e gradualmente se foi espalhando por todo o continente europeu e para além dele” (Fraser, Angus, 1995, História do Povo Cigano). É também a história do que outros fizeram para destruir a sua “diferença”. Segundo Fraser “somos forçados a concluir que a sua maior proeza foi precisamente terem conseguido sobreviver”.
Em diferentes partes do mundo têm designações diversas, na Península Ibérica são ciganos. “Roma” é a designação oficial e a que escolheram para o seu hino.
Ao longo dos séculos, as sociedades hegemónicas, maioritárias, estigmatizaram-nos, segregaram-nos e perseguiram-nos, criando à volta deles preconceitos e estereótipos negativos.
Sobre as mulheres colocaram o labéu de feiticeiras, impuras, imorais, ladras e pecadoras, recusando ouvir a sua voz e vê-las como mulheres e seres humanos.
A título de exemplo, na Suécia, onde os ciganos eram considerados “incapacitados sociais”, foi política oficial a esterilização e os abortos forçados das mulheres ciganas e a retirada injustificada das crianças ciganas às famílias, pelo menos, entre1934 e 1974, muito depois do fim da segunda guerra mundial e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o que também aconteceu noutros países da Europa, com propósitos ditos de “higiene social” e “eliminação dos impuros”.
Como se os direitos humanos, que são universais e indivisíveis, não lhes fossem aplicáveis.
Em 2014, o próprio Governo sueco divulgou um relatório detalhado de tais factos, com o propósito de combater a discriminação contra os ciganos e com vista a “um acerto de contas com o passado”.
Nenhum outro país teve a coragem de o fazer, mas esse acerto de contas com o passado justificar-se-ia como reparação histórica e divulgação do sofrimento e da violação dos mais elementares direitos daquele povo. Porém, será um contrassenso que os ciganos, e em particular, as mulheres ciganas, sejam vistos como vítimas destituídas de todo o poder e capacidade de transformar as próprias vidas, como se essa perspectiva paternalista fosse o contraponto às perseguições da história, que tem o exemplo mais chocante, e mesmo assim silenciado, no meio milhão de homens, mulheres e crianças ciganos assassinados nos campos de concentração do holocausto nazi. Ou o contraponto à segregação, preconceito e discriminação contemporâneos, que se apresentam com um vigor e um discurso de ódio dificilmente imaginável num país democrático de que os ciganos são cidadãos desde 1822.
As mulheres ciganas sabem que são invisíveis e as querem mudas, quer no espaço público, onde nem existem, a não ser quando as insultam e apontam nos órgãos de comunicação social, quase sempre em notícias carregadas de preconceito e generalizações, quer no espaço privado. Aí, são as subalternas dos maridos, dos pais, dos irmãos e o seu valor é aferido em função do “préstimo” que têm para casar, a contento das famílias, ou em função dos filhos varões que sejam capazes de gerar para os seus maridos, não sendo donas do seu corpo e da sua vontade, Quando meninas, são tiradas da escola para assegurar aquele “préstimo” e a “honra” da família, que uma cigana velha há-de um dia “provar” introduzindo-lhe na vagina um dedo envolto num pano branco.
São, pois, as mulheres ciganas que, num movimento associativo imparável, estão a tomar em mãos o seu próprio destino e a fazer ouvir a sua voz, contra as múltiplas opressões que vão desde o preconceito e o racismo da sociedade hegemónica, ao domínio opressivo dos homens na família e nas comunidades ciganas, e à pobreza em que a maior parte delas vive.
Aurora Rodrigues