2019. A violência doméstica contra as mulheres andou nas bocas do mundo. Sentou-se, feroz, nas cadeiras dos ministros. Rugiu alto, no silêncio e no luto que se fez. Não se assustou diante de medidas, resoluções e projetos. A violência doméstica contra as mulheres mascarou-se de discursos longos e ensonados; deixou-se vestir de esperança para depois se apresentar em tons de sangue, desmaiada no chão ou então a correr envergonhada para um buraco qualquer. A violência doméstica contra as mulheres é natural dizem todos.
Ela mexe no telemóvel. Ele ao lado, espreita. Ela olha para ele. Ela explica. Ele sorri mas não entende. Ela mostra o telemóvel. Ele abana a cabeça negativamente. Ela olha para ele. Beija-o ternamente nos lábios. Ele não sorri. A viagem segue. E é assim no metropolitano de todos os dias. De tantas vidas. De tantas mulheres. Sobretudo. O controlo e o poder assumidos como certos pelos homens, feitos maridos, companheiros, namorados, pais. Elas sabem que assim não deve ser; a violência doméstica contra as mulheres é natural dizem todos.
As notícias sobre a violência doméstica contra as mulheres na forma como são contadas, confundem-se com romances de cordel e crimes passionais. Ocupam 2 minutos, entre o futebol, a política feita pelos homens e o detergente que ajuda as mulheres a lavar melhor a roupa dos maridos. São o colorido tenebroso e escandaloso que só acontece aos outros. A violência doméstica contra as mulheres é natural dizem todos.
E as mulheres que falam e denunciam são empurradas para lugares longínquos, secretos e com muitos espaços de silêncios. A medida que não se toma, porque pode ser que ela mude de ideias; porque o ciclo se repete. E os filhos que precisam dos pais. E descobrem um estado de coisas mudas, duras e rígidas. Pois que aparece nesses momentos, uma Senhora Justiça vestida de negro antigo, agarrada à ideia das famílias felizes. Amante de naturezas mortas. A violência doméstica contra as mulheres é natural dizem todos.
As memórias da violência doméstica contra as mulheres são permanentes. Umas escritas na pele à força da ponta de uma faca ou de um grito; outras gravadas a fogo da ponta do cigarro ou na sensação de estar a ser observada. A dúvida da primeira agressão, que se transforma em medo e depois em culpa. De não ser capaz de ser melhor, de aguentar mais, de calar sempre. Enfim, acreditar que tudo pode mudar. A violência doméstica contra as mulheres é natural dizem todos.
A violência doméstica contra as mulheres é natural dizem todos. Natural é sermos felizes. Natural é termos dúvidas. Natural é sermos livres. Natural é dizer NÃO. Uma vez, uma mulher vítima de violência doméstica disse-me: “A violência não é natural. O iogurte é que é”.
Daniel Cotrim