A cada ano que passa, dezenas de mulheres morrem em Portugal, vítimas de violência psicoafetiva, às mãos de maridos, namorados, companheiros e amantes, presentes ou pretéritos. A cada ano que passa, sabemos que isso vai acontecer, que se repetirá, num dia qualquer, em qualquer hora, algures numa vila ou cidade, num lugar onde, intrépida, a violência voltará a fazer a sua aparição. A cada ano, muitos sentirão que as facadas, tiros e outras formas de agressão ou assassínio também os atingiram. Em cada um desses momentos pelo sangue de uma mulher marcados, emocionar-nos-emos, afirmando que é necessário alterar o status quo; os media apresentarão narrativas, sempre exaustivas, sobre a vítima, o agressor, o ambiente e a relação atual ou pregressa de ambos os protagonistas da estória. As televisões promoverão análises e interpretações, regularmente deficientes, preenchendo as lacunas do conhecimento com o achismo… Alguns dispositivos de controlo social, quiçá até governantes, comparecerão nos ecrãs verberando os atos criminais, prometendo novos programas e medidas, uma outra atitude, não deixando de enaltecer o trabalho já desenvolvido – mas a comunidade sabe que todas as medidas e todos os programas se têm mostrado manifestamente insuficientes, e que, dias ou semanas volvidos, as pessoas entrarão em adormecimento sobre o problema, até que novo homicídio nos volte a despertar. Que fazemos? Terá que ser sempre assim? Teremos que continuar a adotar a política da avestruz? Afinal, temos leis, temos programas de prevenção, temos técnicos competentes: o que falta? Que razões determinam as taxas de homicídio, as agressões físicas e psicológicas, a violência económica, sexual e simbólica? O que está por fazer?
Entretanto, continuamos a assistir a decisões judiciais que, em muitos casos, banalizam a violência doméstica quando suspendem penas aos agressores, conferindo-lhes a convicção de impunidade, coluna epicentral da não interrupção dos ritmos da violência doméstica – e com arestos ridículos: por isso, é fundamental que quem legisla e quem aplica a lei leia Beccaria, pois mais importante que a severidade das penas é a certeza da sua aplicação.
Entretanto, mais mulheres serão vitimadas, bem como os filhos, que vítimas são sempre; muitas não apresentarão denúncia, por receio de não servir para nada e poder reforçar a agressividade, outras percorrerão o ciclo infernal das fugas e casas-abrigo, enquanto ele, o agressor, goza o conforto de continuar na casa de morada.
Carlos Poiares