em destaque

acrílico s/ papel 40x30cm
2023
Há compromissos políticos assumidos internacionalmente que é preciso relembrar e recolocar na agenda política dos países, constantemente. O combate à violência contra as mulheres é um deles. Resoluções, recomendações, convenções, leis e continuam a morrer mulheres assassinadas pelos seus maridos e companheiros e milhares continuam a sofrer no silêncio das quatro paredes de sua casa. A violência contra as mulheres, por serem mulheres, persiste e repete-se.
Todos os dias percorremos o caminho da consciência coletiva de que somos vítimas de um crime quando somos agredidas, o que nos leva a não desistir, a propor novas soluções e a construir um espaço de solidariedade e segurança na sociedade. É isso que fazemos por ocasião do Dia Internacional Pela Eliminação da Violência Contras as Mulheres – 25 de Novembro marchando unidas pela mesma causa.
É isso que fazemos nos 16 Dias de Ativismo – entre o dia 25 de Novembro e o dia 10 de Dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, duas datas cujos laços são indissolúveis.
Este ano, 2023, a FEM, Feministas em Movimento, convidou 16 mulheres para escreverem um texto sobre estas duas datas. O resultado é um conjunto de pensamentos, ideias, propostas, que por sua vez, estamos certas, despoletarão novos desafios para que não nos limitemos a assinalar a passagem de mais um ano.
A estas mulheres juntou-se mais uma, através do seu traço e da cor com que caracteriza a imagem.
e pela não violência, o que diariamente confirmamos
é que longo é ainda o percurso quanto à efetivação dos
direitos das mulheres"
Os crimes com marca de género, contra as mulheres, são os únicos em que se exige que a vítima prove que consentiu."
A atualidade da Declaração Universal dos Direitos Humanos
Hoje, parece um paradoxo falarmos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando assistimos diariamente às mais bárbaras violações do que aí foi escrito há 75 anos. Acreditou-se então que era impossível repetir crimes hediondos contra a humanidade e que produzir essa Declaração seria o compromisso para uma nova era.
Nos anos 40 do outro século muitas atrocidades só foram conhecidas depois da guerra. Mas hoje, assistimos ao genocídio em horário nobre, pelas televisões. Vemos pessoas desesperadas a procurar familiares debaixo dos escombros, homens a correr para um hospital com um corpo ensanguentado nos braços, mulheres a chorar porque perderam toda a família, um bebé sobrevivente mas sem nenhum familiar vivo, valas comuns carregadas de corpos! E ainda há quem fique indignado por se falar em genocídio. Todos os dias os números crescem. Mais de 11 mil palestinianos mortos em meados de Novembro, dos quais 4.506 eram crianças.
Os hospitais como alvo! Estimavam-se 50 mil grávidas na Faixa de Gaza e estavam a chegar 180 mulheres por dia para dar à luz. A UNICEF e o Fundo das Nações Unidas para a População em comunicado conjunto relatava: “Algumas das mulheres estão a ter de dar à luz em abrigos, nas suas casas, nas ruas, no meio dos escombros, ou em instalações de saúde sobrelotadas onde as condições sanitárias estão a degradar-se e está a subir o risco de infecções e complicações médicas.” Em 35 hospitais, 21 estavam totalmente encerrados. Devido ao ataque sistemático aos hospitais sobrelotados, bem como devido à absoluta insegurança mesmo das pessoas deslocadas, o stress provocou o aumento dos abortos, dos nados-mortos e dos nascimentos prematuros. A escassez de alimentos, de medicamentos e de água potável configuram uma tragédia para um povo que há décadas tem sido espoliado do seu território e dos direitos mais básicos, os tais direitos humanos universais.
Não há palavras para tal monstruosidade. Estão em causa todas as Convenções Internacionais que dão protecção a civis e o Direito Internacional que regula a guerra… Há que saudar a coragem de António Guterres que fez ouvir a sua voz para denunciar o genocídio. Há que saudar os povos que pelo mundo têm vindo para as ruas, apelando ao cessar fogo e à paz. Alexandra Lucas Coelho, em artigo do “Público” de dia 3 de Novembro dizia: “Não ficarmos impotentes é também questionar quem governa.”
Hoje dia 10 de Dezembro, a obrigação é falar da Declaração Universal dos Direitos Humanos para que ela seja lei e não deixar de denunciar todos os atropelos pelo mundo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos não pode ser letra morta.
10 de Dezembro de 2023
Almerinda Bento
Membro da FEM, Professora aposentada, Feminista, Sindicalista
E ainda há tanto caminho para andar
Ao chegar a casa com a hora de Jantar já passada, liga-me a Almerinda com um pedido: “vou-te chatear!” Então venha lá esse pedido. E assim, à medida que ia elaborando o pedido para escrever um texto sobre Mulheres Género e Sexualidades para assinalar o 25 de Novembro, a minha cabeça começava a trazer recordações e a tentar pensar: o que escrever, sobre o quê, identificação das discriminações como ferramenta para fazer diminuir a Violência? Depois do jantar, o FB apontou-me a direção, ao relembrar uma publicação de há 5 anos sobre 11º Encontro da Marcha Mundial das Mulheres(MMM) e que marcou os 20 anos desde o primeiro encontro, em 1998, no Québec. Decisão feita! Nada como revisitar o “Guia dos direitos das mulheres: pobreza e violência”, editado pela Plataforma Nacional da MMM 2000.
Foi realizado um trabalho exaustivo pela plataforma, no sentido de criar uma brochura com 6 capítulos, em que foram elencadas várias temáticas dos direitos das mulheres. No entanto, só parte de dois e com poucas páginas, foram dedicados a discriminações em função da orientação sexual. Parece pouco, mas foi um grande esforço e pressão exercida quer por representantes do Grupo de Mulheres da Associação Ilga-Portugal, quer pelo Clube Safo, sobre a quase totalidade dos coletivos que integravam a MMM. Foi introduzido o debate sobre a orientação sexual e a não discriminação das lésbicas de uma forma aberta e sem preconceitos.
Mas a questão fundamental é saber se assistimos hoje a um integrar, ou mesmo a uma interiorização, da temática sobre a não discriminação em função da orientação sexual nas agendas de coletivos feministas. Será que a identificação das várias discriminações de que sofrem as lésbicas está interiorizada no dia-a-dia e nas agendas desses coletivos? Folheando o Guia, podemos identificar bastantes avanços a nível legislativo relativamente aos direitos das mulheres, tais como o direito ao aborto, princípios de não discriminação no código do trabalho, direitos parentais entre muitos. No entanto, será que todas estas altercações legislativas são um garante de igualdade e de não violência sobre as mulheres e mais concretamente sobre as mulheres lésbicas?
Numa análise da legislação mais recente é possível observar que muito ainda está por fazer, pois não existe legislação que contemple expressamente a não discriminação com base na orientação sexual e no sexo no que respeita à proteção social, à cultura, à educação, à saúde entre outras. A legislação não acaba por si só com a discriminação, mas dá ferramentas para a combater!
Luísa Corvo
logo do início de 60,com formação em Química/Bioquímica e doutoramento em Farmácia.
Feminista e ativista convicta (igualdade de género e direitos das mulheres). Com um percurso iniciado nos anos 90, com a Revista Lilás, e duas décadas de Associação Ilga Portugal com participações ativas em várias plataformas como por exemplo, a Marcha Mundial das Mulheres e a Plataforma Direito de Optar.
O nosso ponto de encontro chama-se solidariedade
O mês de Novembro traz consigo 16 dias para destacar o ativismo contra a violência sobre as mulheres. Trata-se de uma iniciativa da ONU para dar maior visibilidade a esta luta, uma luta diária, em todos os continentes, em todos os países.
As disparidades sobre as condições de vida das mulheres são enormes, sejam elas económicas e sociais, sejam no campo dos direitos humanos. Estes 16 dias de ativismo colocam o foco na violência sentida pelas mulheres por serem mulheres – da violação à violência conjugal, do assédio às restrições da liberdade no acesso ao trabalho, à educação, à cultura, como vivem a sexualidade, na forma como se vestem, como socializam. E apenas e só porque são mulheres.
Já era tempo de termos ultrapassado estas situações de opressão, já era tempo da igualdade de direitos entre mulheres e homens ser uma coisa normal, fazer parte do dia a dia dos países, dos povos, ser um facto indiscutível da civilização. Mas não. Continuam a existir situações a que não devemos fechar os olhos que violentam mulheres e meninas diariamente. Do Irão tem-nos chegado o exemplo de uma luta corajosa de quem se ergue contra a opressão mesmo correndo o risco de vida. Da Ucrânia chegam relatos de violações de mulheres, na Palestina as mulheres resistem nos escombros dos bombardeamentos, da América Latina vem o entusiasmo pelas conquistas no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, nomeadamente o direito ao aborto em alguns países (finalmente!).
O século em que vivemos, o XXI, iniciou-se sob a égide da luta das mulheres. Foi no já longínquo ano de 2000 que teve lugar a Marcha Mundial das Mulheres com realizações em todos os continentes e em muitos países. Os seus objetivos mantêm-se dramaticamente atuais – a luta contra a pobreza e a luta contra a violência sobre as mulheres. Mas este movimento também mostrou como a luta feminista, a luta dos movimentos de mulheres, não fica dentro das fronteiras do país onde ocorre, bem pelo contrário, origina movimentos de apoio e solidariedade muito variados, que interagem entre si e não raras vezes criam outras dinâmicas.
Quando recordamos a greve das mulheres islandesas, realizada há 40 anos, por salário e direitos iguais e a forma como pararam um país, percebemos como a solidariedade e a união são fundamentais.
Estes 16 dias de ativismo também servem para isso – ponto de encontro das muitas lutas nos vários pontos do Mundo. Solidárias com todas, não deixemos nenhuma mulher para trás!
Helena Pinto
animadora social, feminista
Conquista de direitos – ativismo e academia
O ativismo surgiu, na minha vida, no último ano da licenciatura, quando se proporcionou seguir uma cadeira sobre mulheres e sociedade. Enveredei depois por um mestrado em estudos sobre género e, em 2002, comecei a trabalhar numa ONG de defesa dos direitos das mulheres. Entusiasmada com a luta coletiva e cheia de vontade de ir para a rua gritar e reclamar direitos iguais, rapidamente percebi quão difícil era mobilizar para ações contra a violência contra as mulheres.
No início deste século, o 25 de novembro não era uma data mediatizada. As primeiras ações de rua nas quais participei na Baixa de Lisboa não reuniam mais do que um punhado de mulheres e os homens não eram ainda vistos como aliados. A ocupação do espaço público com um tema considerado (então) do foro privado, bem como a visibilidade das organizações que defendem os direitos de mulheres e crianças estavam longe de terem a legitimidade que vieram a alcançar na última década. Neste aspeto, o ativismo feminista beneficiou muito com a chegada a Portugal de mulheres latino-americanas e europeias com larga experiência de luta nos seus países.
Profissionalmente, segui um caminho que me foi distanciando destes coletivos, sem nunca, porém, me afastar da causa feminista. As aprendizagens feitas nos vários coletivos formais e informais nos quais participei ao longo de quase uma década foram muito úteis no percurso que trilhei na década seguinte. Consciente das persistentes desigualdades de género, não raras vezes insidiosas, nunca despi a camisola de ativista. Não me juntei a nenhum coletivo nos últimos anos, por ser difícil conciliar compromissos profissionais, parentais e cívicos, mas prossegui com o ativismo a uma escala mais pequena, por vezes mesmo individual.
O ativismo traduz-se numa certa forma de estar na vida e, simultaneamente, no mundo académico. Reflete-se nas escolhas que fazemos diariamente relativamente à forma como escrevemos (a preocupação com a linguagem inclusiva, por exemplo), nos temas aos quais escolhemos dar visibilidade e discutir, nas pessoas que convidamos para integrar os eventos que organizamos, nas autoras que incluímos nas referências bibliográficas dos textos e aulas. Trata-se, em suma, de uma postura de questionamento do viés androcentrico que resulta numa ciência comprometida, qualquer que seja a disciplina ou o objeto de estudo. Nada disto é óbvio ou fácil, ainda há muitas resitências. Há, por isso, que ocupar o espaço de manobra possível nos lugares onde nos movemos, se queremos um dia mudar o paradigma.
Liliana Azevedo
socióloga, investigadora integrada no CIES-Iscte
Numa guerra, será que sou cigarra ou sou formiga?
(Ensaio feminista sobre mulheres e guerra)
Estávamos todas sentadas à sombra de um grande cajueiro. O dia estava muito quente, muito quente mesmo. Eram umas 11h da manhã. A hora do maior calor. Levámos água e bolachas pois sabíamos que estaríamos dispostas a conversar por várias horas. Éramos todas muito diferentes: camponesas, deslocadas, professoras, trabalhadoras, pesquisadoras, activistas, artesãs, vendedeiras; mais velhas, mais novas, umas mães, outras não, algumas avós; dizemos obrigada de muitas maneiras: ndilombolela, kihosukuro, khanimambu, asante; algumas gostam de cobrir a cabeça com capulana, outras usam chapéu, outras deixam o cabelo ao vento cortado curtinho, amarrado em tranças ou arranjado com mechas longas. Importaram pouco as nossas diferenças à sombra do grande cajueiro naquele dia. Pelo menos pareceu-me assim. Todas éramos formigas. Pelo menos, pensava eu, que éramos todas formigas. Mas agora pergunto-me muitas vezes: será que eu sou formiga?
Todas nós queríamos falar de nós e das nossas vidas que afinal se cruzam com as vidas de muitas outras mulheres que nós conhecemos e, até, com a vida de outras que nós nunca vimos mas sentimos que fazem parte dessa nossa irmandade que os sofrimentos comuns parecem engendrar. No início, a vontade de falar era tanta que nos atrapalhámos um pouco umas às outras mas, rapidamente, sobrevieram os silêncios, cada vez mais profundos, dependendo da intensidade da dor. Parecia, como nos contou a Latifa (e claro que este nome foi arranjado agora), que estávamos num buraco de fogo onde tínhamos sido condenadas a morrer. Mas de cada vez que uma de nós falava, era como a saliva do passarinho, que voava perto, e que caía no fogo e o ajudava a apagar. Percebemos que não só a nossa condenação estava condenada a não acontecer como de pingo em pingo de saliva fomos dominando o fogo até que ele se extinguiu.
O meu objectivo para esta crónica era escrever um texto sobre mulheres e guerra. Porém da minha cabeça não saem nem as imagens, nem os cheiros, nem o calor, e muito menos as palavras de todas nesse final de manhã, lá em Mahate. E não me saem da cabeça porque tudo aquilo fez e faz muito mais sentido para mim do que muitos dos artigos publicados que leio e que, confesso, até gosto muito. Sou kakata: não deito nada fora, por princípio. Mas confesso que há coisas que me entusiasmam muito mais do que outras. Falámos de coisas muito tristes mas que precisam de ser faladas. Falámos de como matam as mulheres cortando-lhes as mamas, abrindo os seus ventres para lhes retirarem os fetos. Falámos de como as raptam para as obrigar a ser espias, a carregar as armas, a cozinhar, a fazer a machamba, a atender um batalhão inteiro por dia.
Não preciso de explicar o que isso significa. Para elas o pudor no uso das palavras é muito importante, é sinal de respeito. Então não quero impor a crueza das palavras com que costumamos designar essas coisas. Falámos de como as dividem entre ‘Arroz Lulu’ porque são boas para comer, e as escolhem para servir como esposas de comandantes – mais uma vez, o uso das palavras é uma forma de diminuir o trauma e a vergonha. Tenham isso em atenção enquanto lerem estas palavras – e as outras, consideradas feias, são ‘mapira’ e só servem para trabalhar. Há lá coisa mais cruel do que estas qualificações? Falámos das mães que se recusam a amamentar as crianças nascidas dos estupros. Falámos do pavor de ver entrar em casa um filho que se sabe ter matado ou ter sido obrigado a comer a carne e a beber sangue humanos e que nunca mais recuperará a paz nem o sono. Chorámos quando falámos das mães que se entregam aos insurgentes para protegerem as filhas dos estupros. Falámos e chorámos dessas e de muitas outras coisas especialmente da forma como as crianças e as/os jovens estão a ser ensinadas/os a pensar que a resolução de todos os problemas se consegue com fardas, armas, obediência sem réplica e violência; os mega-projectos extractivistas e a cobiça nacional e internacional que lhes permitem transformar montanhas em pedra triturada para fazer cimento, minas em campos de concentração, campos de cultivo em crateras, bases logísticas em caminhos do mar fechados para os pescadores, as florestas em campos de refugiadas/os, as chamadas IDPs – Internal Displaced People – e assim por diante. Falámos de como a primeira vítima da guerra é a verdade, de como a guerra não terminou, só parou um pouco; como Mocímboa da Praia, não importa a propaganda, está em silêncio, não se ouve nem uma galinha, nem um cabrito e as tropas ruandesas estão encostadas à praia. Falámos de que é preciso negociar para chegar à paz e de que as Forças de Armadas de Moçambique conhecem quem está do outro lado e até, em alguns momentos, já fizeram acordos com eles para dividir despojos, territórios e evitar mútuas emboscadas. Falámos que sim, a guerra tem rostos e nomes que são conhecidos, mas parece que não há vontade de acabar com ela. Falámos de como esta guerra não é religiosa e de como o capitalismo extractivista tem sido a medida de todas as coisas e de como a ganância destrói o país e a vida das pessoas e inventa a ideia de que para se ser alguém se tem que ter muito dinheiro, a qualquer preço. Falámos de como soldados e polícias roubam, matam, torturam, estupram e de como é ter medo de falar, de denunciar porque chega lá com dinheiro na mão e o tribunal fecha as portas e não acontece nada.
A nossa conversa foi carregada de emoções, informação, reflexão e conhecimentos. As vozes, foram autorais e firmes, usando as suas próprias palavras sem nunca se desconectarem dos corpos, das comunidades e dos territórios. Não correu uma única lágrima porque a força de estarmos juntas e sabermos que temos razão foi muito maior do que a ameaça do bufo que passou de mota, vezes sem fim, pelo caminho à beira da sombra onde estávamos sentadas para ir relatar às autoridades a nossa subversão: conversar e dizer alto e bom som o que sabemos, pensamos e queremos que se saiba sobre esta guerra maldita.
Há momentos que são como os raios de um relâmpago, breves, mas muito intensos, em que as nossas vidas, tão diferentes, se cruzam, se juntam e os corações parecem bater ao mesmo compasso. Mas é preciso dizer quem sou eu naquela sombra, de onde venho e de onde o meu coração bate com o delas. É que eu que vivo num mar de privilégios e posso vir-me embora enquanto elas continuam lá, no calor e no fogo das balas e das porradas.
Passaram-se uns dias e o cenário mudou radicalmente. Estávamos numa sala de conferências sentadas em cadeiras com mesas à nossa frente, cobertas com belas capulanas, tínhamos ar condicionado, bombons, água mineral à disposição e rede de internet. Computadores ligados, smartphones sempre na mão prontos a responder às mensagens do whatsapp ou do instagram que estão sempre a entrar, tudo menos urgentes e tudo menos importantes. Recitaram-se todas as ladainhas do género, revisitou-se o repertório aprendido com a cooperação para o desenvolvimento sobre os direitos humanos das mulheres enquanto muitas partilhavam fotografias dos últimos modelos de roupa que é preciso comprar para as festas do fim do ano.
Certeira foi a observação final que ouvi em modo de desalentada impaciência: isto para mim é o feminismo das cigarras. Ela, a que falou assim, tinha estado à sombra do cajueiro comigo. Eu cá fiquei a perguntar-me, e eu? Não sou eu uma cigarra?
Mas eu quero é ser uma formiga ou então a saliva do passarinho que voa sobre o buraco de fogo.
Teresa Cunha
PS: Escrevo com a Norma Ortográfica Moçambicana
Dar voz – responsavelmente
Uma das missões do jornalismo é dar voz, sobretudo a quem não tem voz. As mulheres – alvo maioritário de violência, daí que desde 1995 as Nações Unidas assinalem, a cada 25 de novembro, o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres – não têm tanta voz quanto os homens, como vários inquéritos nacionais e internacionais têm vindo a confirmar, ano após ano.
Ora, quando as mulheres são sujeito de notícia são-no, muitas vezes, enquanto vítimas (consultar o estudo Who makes the news?). Infelizmente, isso decorre de ser um facto que a violência é exercida mais sobre as mulheres. Mas deve levar o jornalismo a refletir sobre a forma como dá voz a essas mulheres. A que tipo de voz damos eco? Que sujeitos de notícia geramos? Retratamos vítimas ou sobreviventes?
O jornalista não deve identificar, direta ou indiretamente, as vítimas de crimes sexuais – esta linha do Código Deontológico não tem ‘mas’. Nem que as próprias vítimas, por alguma razão ilógica, queiram assumir as suas identidades, o jornalismo não deve, e não pode, fazê-lo. Porque será responsável por tudo o que possa vir a acontecer posteriormente.
Simultaneamente, o jornalista deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor –esta última parte é algo a ter muito presente em qualquer trabalho com mulheres vítimas e sobreviventes de violência.
Outro ponto importante: o jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função de várias características, nomeadamente sexo e género, mas também instrução, situação económica ou condição social, elementos frequentemente referidos na descrição das vítimas/sobreviventes, por comparação com os agressores.
A verdade é que, por mais bem-intencionado que seja, o jornalismo pode, de facto, resultar numa revitimização das mulheres a quem dá voz.
Para não o fazer, tem de escolher bem as palavras que usa, colocar as mulheres no papel de sujeitos (mulher assassinada por marido em vez de marido mata mulher), contar as suas histórias sem detalhes que possam desocultar as suas identidades ou colocá-las em risco, enquadrar e contextualizar o problema social da violência de género.
Outra coisa que tem sido repetidamente aconselhada por organizações que combatem a violência contra as mulheres é que o jornalismo dê destaque a histórias de resistência e capacitação de sobreviventes, fazendo delas agentes de mudança, e que faça referência às linhas e serviços de apoio existentes. Já alguns órgãos de informação conceituados o fazem. Em Portugal, ainda nenhum. A agência Lusa, através da Comissão para a Igualdade criada recentemente, já concordou com a necessidade de encontrar uma forma de disponibilizar regularmente essa informação nos textos que divulga sobre o tema (que são, como se sabe replicados por muitos outros órgãos de informação). É um bom prenúncio, que temos de tornar, quanto antes, uma realidade.
Sofia Branco
Jornalista na agência Lusa e presidente da Associação Literacia Para os Media e Jornalismo. Encontra-se a fazer doutoramento em Sociologia, na área de estudos feministas
Os nossos nomes
Chama-se Amina, Oksana, Niki, Sanyia, Fatu.
Enquanto casa havia, levantava o corpo pela manhã, enchia-a com os aromas delicados: leite, café preto, lima, erva-príncipe, mamoa, fruta-pão, hibisco, menta, fubá.
Conduzia os passos em sentido circular, como um abraço desenhado no chão, buscando a água e os sons agudos com que nomeava sítios familiares, os de aprender a fala erguida, os de ensinar os filhos a crescer em paz.
Enquanto casa havia, o plural reinventava os dias, comuns e excepcionais, vizinhança onde dor e alegria se repartiam como ecos amorosos, diálogos prolongados noite fora, em conversa com os sonhos.
Até que a casa se desmoronou.
Cada uma, então, nunca perdida, agarrou nos filhos e numa trouxa breve, conduziu os passos rápidos em sentido linear.
Passos acossados, linhas sinuosas através de cacos, estrondos, gritos, desertos, crateras, ventanias, arribas, desfiladeiros, cursos de água, sombras, fantasmas, insultos, rezas, imprecações, silvos, pedras, muros, crostas, estilhaços.
Cada uma das mulheres a própria casa móvel, aberta aos filhos e a todos os que se alimentam do seu corpo macerado, nunca desatento. Cada uma em busca de chão onde o aroma do sangue se afaste e o do leite se dilua num copo de chá – menta, hibisco, lima – tomado numa roda-abraço, entre os risos e os passos dançantes das crianças.
Abrigo, chão, casa do corpo, casa humana, casa humana comum, troca entre mãos dispostas a acolher em vez de repelir, reparando na diferença que enlaça e anuncia a vida, nunca naquela que fere, a própria ferida.
Assim essa mulher chamada Kelli, Mya, Sahana, Mariama, é uma pujança, irmã de cada uma de nós, as que buscamos a justa casa para o justo anseio, para o justo mundo.
Julieta Monginho
Escritora. Autora de vários romances entre os quais Os Filhos de K. (2015, finalista dos Prémios Fernando Namora e PEN Clube Português), A Terceira Mãe (2008, Grande Prémio de Romance e Novela da APE) e Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio (2022, Grande Prémio de Romance e Novela da APE)
Educar desde a infância contra a violência de género
A prevenção da violência de género deve ser feita na infância, momento em que as crianças aprendem, através dos modelos que observam, diferentes comportamentos. As crianças devem receber ferramentas que lhes permitam compreender e agir sabendo que meninos e meninas são diferentes, mas que os seus direitos e as suas oportunidades devem ser iguais. Desde cedo, as crianças absorvem estereótipos que precisam de ser evitados através de estratégias lúdicas que promovam uma aprendizagem mais saudável.
A Educação Pré-Escolar é, por isto, um espaço privilegiado para a experiência de diferentes papéis que se fazem em todas as brincadeiras entre pares. Para isso os/as profissionais de educação devem estar preparados/as, enquanto figuras de referência, para a promoção destes espaços de igualdade e de equidade. A forma como meninos e meninas ainda são educados/as de forma diferenciada, contribui para a aquisição de preconceitos que podem vir a condicionar o seu comportamento. Continua a esperar-se que as meninas sejam mais sensíveis, mais delicadas, mais bonitas, mergulhando-as num universo cor de rosa, castrador, do qual os meninos são consecutivamente afastados. A coibição das emoções e a valorização de umas em detrimento de outras pode estar na base da repressão e de alguns comportamentos mais agressivos. Urge que, na infância, a educação facilite a experimentação de diferentes papéis e de diferentes significados, de forma livre, sem condicionamentos pelo seu sexo ou pelo seu género. No seu livro “Os meninos são a cura do machismo” a jornalista Brasileira Nana Queirós reflete sobre a forma como os meninos são educados e de como isso os coloca, também, em perigo. Nenhuma criança nasce violenta, mas o meio a que é exposta contribui para isso, cada vez mais. A forma como as crianças brincam e até os materiais que lhes são proporcionados pautam, já, uma enorme desigualdade, encaminhando as meninas para um universo de vulnerabilidade e os meninos para a luta de poder, pelo que estas diferenças precisam de ser anuladas através de uma educação mais refletida. As/os profissionais em educação de infância parecem estar pouco conscientes da influência que os estereótipos de género têm no comportamento das crianças, não reconhecendo, ainda, a importância de uma educação não sexista. Se durante a infância as crianças são expostas a modelos pouco saudáveis irão, com mais facilidade, reproduzi-los nos seus comportamentos e relações.
Educar para a igualdade de género, desde a infância, pode e deve ser um investimento nas políticas de prevenção da violência baseada no género, devendo, desta forma, investir-se na capacitação das pessoas que educam formal e informalmente, profissionais, famílias e comunidade.
Vânia Beliz,
Psicóloga, Sexóloga e Doutoranda em Estudos da Criança na Especialidade de Saúde Infantil
O feminismo e a interseccionalidade
A violência contra as mulheres manifesta-se de diversas formas e nos vários espaços das suas vidas. Crescemos e descobrimo-nos mulheres, algumas, apenas mulheres, outras, mulheres e negras. A identidade é algo que vamos construindo, e que é sempre afetada pela experiência de vida que cada uma tem.
Com bell hooks aprendemos que para as mulheres negras não existe uma separação entre o machismo e o racismo, que a luta feminista é também a luta anti-racista, e que ambas são também a luta contra um sistema capitalista que perpetua estas injustiças. E também, que muito facilmente foram esquecidas as mulheres negras na história, e a sua conquista de direitos foi tantas vezes secundarizada.
O progresso feminista obedeceu muitas vezes à mesma lógica dos progressos sociais, primeiro as pessoas brancas e só depois as pessoas negras, muitas vezes vimos a reprodução do patriarcado nos movimentos pelos direitos das mulheres.
Em Portugal, torna-se ainda mais grave perceber o abandono das mulheres negras, quando não existe nenhum marcador de pertença étnico-racial nos censos. Algumas informações vão surgindo, por estudos e pesquisas que nos mostram acima de tudo a necessidade gritante de informação. Não é possível avaliarmos o impacto do patriarcado e do racismo nas políticas públicas que se transportam para a vida das mulheres.
Em países como o Brasil ou os Estados Unidos é possível saber, através de dados estatísticos, que os trabalhos mais precários e mais vulneráveis pertencem às mulheres negras. Replicando modelos coloniais e opressores onde trabalhos como o serviço doméstico continuam com uma sobre representação destas mulheres.
Percebemos ainda a falta de informação que existe, quando falamos sobre a violência obstétrica e percebemos, sem sombra de dúvida, a invisibilização que as mulheres negras enfrentam. São consideradas mais fortes, mais resilientes, mais tolerantes à dor, perpetuando a violência médica que foi exercida sobre os corpos negros em nome da investigação e do desenvolvimento na saúde. É desapontante que a desumanização que lhes foi imposta perdure hoje e continue a justificar o desrespeito pelos seus direitos.
De acordo com o estudo feito pela SAMANE – Associação saúde das mães negras e racializadas em Portugal, mais de um quinto das mulheres negras sofreu violência obstétrica. Os dados dizem-nos ainda que 10,7% das mulheres não se sentiram respeitadas pelos profissionais de saúde durante a gravidez, 33,5% sentiram-se mesmo humilhadas e 41,1% negligenciadas.
O feminismo, enquanto movimento que luta pelos direitos de todas as mulheres, tem o dever de ser interseccional, de lutar por todas as mulheres, de ser contra todas as formas de opressão sobre qualquer mulher e de nunca deixar nenhuma mulher para trás. Devemos lutar de acordo com o que nos ensinou Audre Lorde: “Não seremos livres, até todas sermos livres.”
Aliyah Bhikha
Muitas mulheres são pobres. E são mais pobres do que os homens.
Esta é uma evidência confirmada pelos dados estatísticos mais recentes sobre o risco de pobreza ou exclusão social1. Em 2022, ano no qual 20,1% da população residente em Portugal estava em risco de pobreza ou exclusão social, as mulheres encontram-se entre os grupos sociais para os quais este risco é acrescido. Para além disso, as mulheres acumulam vulnerabilidades, tendo simultaneamente maior risco de pobreza ou exclusão social (20,7% face a 19,5% nos homens), maior risco de pobreza monetária (16,8% face a 15,9% nos homens), maior taxa de privação material e social severa2 (5,9% face a 4,6% nos homens) e maior intensidade laboral muito reduzida (5,8% face a 5,4% nos homens).
E, se as mulheres constituem um grupo social atravessado por heterogeneidades várias, dentro da população feminina existem subgrupos onde a vulnerabilidade ao risco de pobreza ou exclusão social se amplifica e a assimetria face aos homens aumenta. Este é o caso (ainda de acordo com a mesma fonte) das mulheres que vivem sozinhas, cuja taxa de risco de pobreza ou exclusão social é de 30,6% comparativamente com 19,5% dos homens que vivem sozinhos; ou das mulheres com 65 ou mais anos, cuja taxa é de 22,7% comparativamente com 17,5% dos homens no mesmo grupo etário. Essa vulnerabilidade, aliás, aumenta com a idade: uma em cada quatro mulheres com 75 ou mais anos estão em risco de pobreza ou exclusão social.
Num contexto em que o Governo identifica 86 mil famílias em situação de “indignidade habitacional”3, e em que se assiste a uma “degradação do acesso à habitação” em Portugal, face ao aumento dos preços das casas e das rendas, além da recente subida das taxas de juro4,importa dar atenção acrescida a esta dimensão.Com efeito, a sobrecarga das despesas em habitação tem também uma expressão genderizada, assumindo uma dimensão particularmente agravada para as famílias monoparentais, que na sua generalidade têm uma mulher como responsável. A taxa de sobrecarga das despesas em habitação assume 14,3% nas famílias monoparentais (face a 5% em média para o total de famílias)5.
A pobreza monetária das mulheres encontra-se, em larga medida, associada às elevadas e persistentes disparidades remuneratórias entre mulheres e homens: em 2021, as mulheres ganhavam (em média) menos 15,9% do que os homens6. Esta assimetria é fortemente ampliada quando se considera o valor das pensões: em 2022, as mulheres recebiam (em média) pensões que representavam menos 43% das dos homens7.
Mas as mulheres não são pobres apenas do ponto de vista dos seus rendimentos. As mulheres são também pobres do ponto de vista do tempo. Após as longas horas dedicadas pelas mulheres ao trabalho pago e ao trabalho não pago de cuidado e doméstico – sendo que a jornada de trabalho total das mulheres é, em média, em cada dia, superior à dos homens em 1 hora e 13 minutos -, o tempo que lhes resta para si próprias, um tempo a que possam chamar seu, para fazerem as coisas que lhes dão prazer e de que realmente gostam, é um tempo que claramente escasseia8. Por isso, as mulheres têm uma particular pobreza de tempo.
Apesar destas, e de outras, evidências, constata-se (e lamenta-se) que o Plano de Ação 2022/2025 da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza9 não contemple, de forma adequada e suficiente, uma perspetiva sensível ao género que transversalize a consideração das particulares vulnerabilidades das mulheres nos diferentes domínios de ação.
Heloísa Perista
(1) Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR) / EU Statisticsonincomeandlivingconditions (EU-SILC), 2023. Cf. Observatório Nacional de Luta contra a Pobreza (2023). Pobreza e Exclusão Social. Relatório 2023. Porto: EAPN Portugal. Acessível em www.eapn.pt
(2) O indicador de privação material e social reporta-se a itens de privação associados à alimentação, à pobreza energética, aos atrasos nos pagamentos de serviços essenciais, à possibilidade de ter uma almofada financeira para fazer face a despesas inesperadas, itens associados a sociabilidade e convivência social, etc..
(3) Expresso, 5 de outubro de 2023. Acessível em https://expresso.pt/economia/economia_imobiliário
(4) Banco de Portugal, Boletim Económico | Outubro 2023. Acessível em www.bportugal.pt
(5) Observatório Nacional de Luta contra a Pobreza, op. cit.
(6) GEP / MTSSS, Barómetro das Diferenças Remuneratórias entre Mulheres e Homens,2023. Acessível em www.jornaldenegocios.pt/economia/seguranca-social/detalhe/mulheres-tem-pensoes-43-mais-baixas-do-que-os-homens
(7) Relatório sobre a Sustentabilidade Financeira da Segurança Social. Cf. Jornal de Negócios, 13 de novembro de 2023. Acessível em
(8) Perista, Heloísa; Cardoso, Ana; Brázia, Ana; Abrantes, Manuel; Perista, Pedro (2016). Os Usos do Tempo de Homens e de Mulheres em Portugal. Lisboa: CESIS/CITE. Acessível em www.cesis.org
(9) Acessível em www.portugal.gov.pt
Da sabedoria ao estigma: o envelhecimento e o idadismo no feminino
O tempo e a passagem dos anos são fatores incontornáveis na nossa vida. O envelhecimento, que deveria ser uma jornada de sabedoria e crescimento, muitas vezes transforma-se numa experiência marcada pelo idadismo. O Idadismo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), “refere-se a estereótipos (como pensamos), preconceitos (como nos sentimos) e discriminação (como agimos) direcionados às pessoas, com base na sua idade” e as consequências deste tipo de discriminação são graves: regressão da saúde física e mental, menor expectativa de vida, recuperação mais lenta de incapacidade e, até, declínio cognitivo.
No entanto, é indiscutível que a forma como o envelhecimento e o idadismo impactam homens e mulheres diverge substancialmente e é fundamental explorar a razão por trás dessa disparidade e compreender os desafios enfrentados pelas mulheres à medida que avançam nas diversas etapas da vida.
O idadismo está interligado com outras formas de discriminação, nomeadamente o sexismo e o racismo, que representam as três das principais causas de preconceito em todo o mundo. Consequentemente, as mulheres podem enfrentar uma carga adicional de discriminação devido à conjunção da sua idade com o género.
Existem diversas formas de evidenciar essa relação, das quais destaco três. A primeira reflete-se nos padrões de beleza, ou seja, as expetativas sociais em relação à aparência física que, geralmente, divergem entre homens e mulheres, sendo que as mulheres enfrentam uma maior pressão para parecerem jovens, face à expressão “os homens são como o vinho” e “ficam mais charmosos com a idade e com cabelos brancos” enquanto uma mulher com cabelo branco “está a descuidar-se” (um exemplo, em si, de idadismo). A segunda manifesta-se nas expetativas culturais e sociais que, muitas vezes, atribuem às mulheres a maior responsabilidade no cuidado da família, tornando-as mais propensas a uma menor participação cívica, bem como a um aumento da solidão e do isolamento social. A terceira realça que as mulheres mais velhas podem estar sujeitas a um aumento dos riscos de violência de género, que incluem abuso emocional, financeiro e físico.
A diferença na forma como o envelhecimento impacta homens e mulheres torna-se evidente com o envelhecimento da própria população que afeta mais as mulheres devido à sua maior longevidade. Conforme o livro " Como envelhecem os portugueses: Envelhecimento, saúde, idadismo", publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e Pordata, a maioria dos idosos que vivem sozinhos são mulheres, e de acordo com os Censos de 2011 são as mulheres que utilizam mais serviços coletivos de apoio social.
É preciso promover uma sociedade mais justa e igualitária. De forma que as mulheres possam viver a longevidade de uma forma saudável e feliz, sem a pressão social atual que aparece pela combinação do idadismo com o sexismo.
Compreender a interação entre o idadismo, o género e o envelhecimento é fundamental para valorizar e respeitar as contribuições de todas as pessoas, independentemente da sua idade ou género. É urgente o apelo para superar os preconceitos e construir um futuro em que todos possamos envelhecer com dignidade e igualdade.
Elena Duran
Founder and CEO da 55+
Machismo, racismo, xenofobia: a multidimensionalidade da opressão
As desigualdades são estruturantes para o capitalismo, delas depende a sua sobrevivência. Desigualdades essas que não são naturais, decorrem de construções de cariz social, económico e cultural que estratificam as pessoas. Assim se estabelecem relações de poder que subjugam aquelas a quem é reconhecido estatuto inferior. O machismo, o racismo, a xenofobia servem o propósito de perpetuar as desigualdades. A ideia de superioridade justifica a exploração laboral, mas também outras formas de dominação e violência que recaem sobre as mulheres, sobre as pessoas racializadas, sobre as migrantes.
O racismo estrutural em Portugal, herança do seu passado colonialista, traduz-se em desigualdades de toda a ordem. Ainda que não detenhamos os dados étnico-raciais necessários para aferir a verdadeira dimensão do problema, as mais conceituadas organizações nacionais e internacionais alertam que as pessoas racializadas continuam a ser alvo de todo o tipo de discriminações, seja na educação, emprego, saúde, justiça, entre outros setores. A violência racista, e especialmente aquela que é perpetuada pelas próprias forças de segurança, é uma das manifestações mais atrozes deste flagelo. E continua a matar em Portugal.
Às pessoas migrantes é negado o direito a ter direitos. Respondem às demandas da economia nacional, engordam os cofres públicos, mas continuam a ser estigmatizadas e sujeitas a procedimentos que as criminalizam e fragilizam. A par de não consagrar o direito fundamental à imigração, a legislação nacional não é cumprida pelo próprio Estado português, e as migrantes ficam à mercê de patrões sem escrúpulos e máfias que as condenam a formas de escravatura moderna, despojando-as de toda a dignidade.
As vivências e as condições no feminino são diversas e estão em permanente mutação. Quem se constrói mulher, quem se faz mulher, é alvo de desigualdades e discriminações múltiplas, o que nos convoca a conhecer e combater a opressão na sua multidimensionalidade. No contexto de uma sociedade patriarcal e eurocêntrica, as mulheres, e particularmente, as mulheres racializadas e/ou migrantes, são submetidas a processos de silenciamento e invisibilização, que alimentam todo o tipo de abusos e atropelos aos direitos mais básicos. Impedidas de falar e de ser escutadas, são remetidas a um lugar de não sujeito. Potenciar e garantir que as suas vozes têm eco, que se multiplicam, combater todas as manifestações do capitalismo, articulando lutas e esforços, é o caminho para libertar as mulheres das violências estruturais reproduzidas na sociedade.
Mariana Carneiro
Socióloga do trabalho, especialista em Direito do Trabalho, Mestranda em História Contemporânea, ativista dos direitos dos imigrantes
VSBI e o surgimento do movimento Corta a Corrente
A tecnologia digital faz hoje parte de como nos relacionamos e comunicamos uns com os outros, tendo tido um papel importante durante a pandemia e unindo famílias e amigos num contexto de deslocação e isolamento.
As grandes empresas tecnológicas vendem todos os nossos dados para que outras criem anúncios e conteúdo personalizado ao utilizador, de forma a maximizar o período de interação com o ecrã e os seus lucros. Os conteúdos que mais são partilhados nas redes sociais são os mais lucrativos, que demasiadas vezes coincide com a propagação de desinformação e violência.
As crianças e jovens são presas fáceis neste mundo das redes sociais onde o amor próprio se conquista pelo número de likes e visualizações, pela pouca autenticidade das fotografias e padrões de beleza irreais, e pelas contínuas montras de vidas ideais/irreais. Na escola, o programa de Cidadania carece de ferramentas essenciais ao crescimento, como de protecção no uso das redes sociais, de manutenção de saúde mental e de uma educação sexual plena, que não aborde só as DSTs e métodos contraceptivos, ajudando a definir traços de relações saudáveis e padrões culturais de risco.
A Violência Sexual Baseada em Imagens (VSBI) é um fenómeno que tem vindo a crescer, definindo-se pela criação ou distribuição não autorizada ou consentida de imagens de teor sexual. As vítimas são predominantemente do sexo feminino e os perpetradores do sexo masculino. A VSBI interseta-se muitas vezes com outras formas de violência, nomeadamente com a violência doméstica e no namoro (ex. como forma de controlo coercivo através da ameaça de divulgação de imagens íntimas), mas também com exploração sexual (como a comercialização de vídeos de teor sexual divulgados sem consentimento em plataformas de mensagens encriptadas e sites de pornografia).
O grupo Grevio, grupo responsável pelo controlo da Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica segundo a Convenção de Istambul, salienta que “a violência de género contra as mulheres, na esfera digital pode ser particularmente acentuada por fatores como a deficiência, orientação sexual, filiação política, religiosa, origem social, estatuto migratório ou de figura pública”.
Muito se tem feito na área da narrativa de culpabilização da vítima, apostando-se predominantemente em campanhas de sensibilização direccionadas às mulheres (ex. Campanhas da GNR), cuja mensagem condescendente remete para “achavas mesmo que ele não ia partilhar?”. É importante salientar que a prevenção de comportamentos de risco nas redes sociais é importante mas, tal como a narrativa do “puseste-te a jeito” direccionada a vítimas de violação teve de ser combatida para deixar de ser aceitável, também aqui a Violência Sexual Baseada em Imagens e o surgimento do movimento Corta a Corrente abordagem deveria ser deixar de culpabilizar a vítima e de a responsabilizar por toda a prevenção.
Urge, por isso, sensibilizar os jovens e adultos, nomeadamente do sexo masculino, para a consequência que uma partilha não consentida pode ter na vida das mulheres (ex. perda de trabalho, necessidade de realocação, assédio online/offline, humilhação, perda de privacidade e liberdade, síndrome pós-traumático, ataques de pânico). A campanha feita pelo clube Rio Ave aquando do dia da Mulher de 2021 é um bom exemplo de um sucesso neste sentido.
Foi após a mediatização de um caso de VSBI que em 2020 criámos o movimento Corta a Corrente com o objectivo de lutar contra a normalização da prática, mas também de influenciar os decisores políticos a defender mais estas vítimas e fazer frente às grandes empresas tecnológicas. Redigimos uma petição que propunha que este crime fosse individualizado e elevado a crime público no contexto penal (dada a natureza pública já inerente), que as consequências para os perpetradores fossem alinhadas ao sofrimento das vítimas face à dimensão que o crime tem com a componente digital, e que se iniciasse o debate da responsabilidade e papel que as redes sociais, operadoras e órgãos de regulação têm/devem ter.
A petição foi entregue à Assembleia da República em Fevereiro de 2021 com mais de 8.500 assinaturas e, em Outubro de 2022, foi discutida em plenário, havendo quatro projectos de lei apresentados com sugestões de abordagem diferentes. Infelizmente, a proposta que foi aprovada por maioria não autonomizou nem tornou público a VSBI. Propôs uma pena máxima mais alta que a actual e introduziu alterações relativas ao papel das plataformas digitais. Nenhuma das propostas apresentadas contemplou a inserção da VSBI no plano escolar.
Embora alguns passos tenham sido dados, ainda estamos longe de alcançar os objectivos propostos pela petição que consideramos essenciais para a diminuição de casos de VBSI e melhoramento de resposta às vítimas.
Mariana Fernandes
Rede de Jovens pela Igualdade, Projecto Faz Delete 2022/2023, “FAZ DELETE-diagnosticar, sensibilizar e prevenir a violência sexual com base em imagens contra jovens mulheres”
Isabel Ventura e Maria João Faustino, Jornal Público, 08/02/2022, “Violência sexual baseada em imagens (VSBI): quando a imagem é uma arma”
Campanha dos 16 Dias de Ativismo – notas
(1) A Campanha dos 16 Dias de Ativismo foi lançada em 1991, por 23 mulheres de diferentes países, reunidas pelo Centro de Liderança Global de Mulheres (Center for Women’s Global Leadership – CWGL), com o objetivo de promover o debate e denunciar as várias formas de violência contra as mulheres no mundo.
(2) Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres. in, https://themis.org.br/16-dias-
de-ativismo-pelo-fim-da-violencia-contra-as-mulheres/
(3) A data homenageia também as irmãs Mirabal: Pátria, Minerva e Maria Teresa, ativistas políticas da
República Dominicana, assassinadas em 25 de novembro de 1960. Álvarez, Julia (1995). El tiempo de las
mariposas. Disponível em:
https://www.edu.xunta.gal/centros/ieschapela/system/files/lvarez,%20Julia%20%20-
%20En%20el%20tiempo%20de%20las%20mariposas.pdf
(4) Dia Internacional dos Direitos Humanos.
Os nossos nomes
Julieta MonginhoChama-se Amina, Oksana, Niki, Sanyia, Fatu.
Enquanto casa havia, levantava o corpo pela manhã, enchia-a com os aromas delicados: leite, café preto, lima, erva-príncipe, mamoa, fruta-pão, hibisco, menta, fubá.
Conduzia os passos em sentido circular, como um abraço desenhado no chão, buscando a água e os sons agudos com que nomeava sítios familiares, os de aprender a fala erguida, os de ensinar os filhos a crescer em paz.
Enquanto casa havia, o plural reinventava os dias, comuns e excepcionais, vizinhança onde dor e alegria se repartiam como ecos amorosos, diálogos prolongados noite fora, em conversa com os sonhos.
Até que a casa se desmoronou.
Cada uma, então, nunca perdida, agarrou nos filhos e numa trouxa breve, conduziu os passos rápidos em sentido linear.
Passos acossados, linhas sinuosas através de cacos, estrondos, gritos, desertos, crateras, ventanias, arribas, desfiladeiros, cursos de água, sombras, fantasmas, insultos, rezas, imprecações, silvos, pedras, muros, crostas, estilhaços.
Cada uma das mulheres a própria casa móvel, aberta aos filhos e a todos os que se alimentam do seu corpo macerado, nunca desatento. Cada uma em busca de chão onde o aroma do sangue se afaste e o do leite se dilua num copo de chá – menta, hibisco, lima – tomado numa roda-abraço, entre os risos e os passos dançantes das crianças.
Abrigo, chão, casa do corpo, casa humana, casa humana comum, troca entre mãos dispostas a acolher em vez de repelir, reparando na diferença que enlaça e anuncia a vida, nunca naquela que fere, a própria ferida.
Assim essa mulher chamada Kelli, Mya, Sahana, Mariama, é uma pujança, irmã de cada uma de nós, as que buscamos a justa casa para o justo anseio, para o justo mundo.
Escritora. Autora de vários romances entre os quais Os Filhos de K. (2015, finalista dos Prémios Fernando Namora e PEN Clube Português), A Terceira Mãe (2008, Grande Prémio de Romance e Novela da APE) e Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio (2022, Grande Prémio de Romance e Novela da APE)
Educar desde a infância contra a violência de género
Vânia BelizA prevenção da violência de género deve ser feita na infância, momento em que as crianças aprendem, através dos modelos que observam, diferentes comportamentos. As crianças devem receber ferramentas que lhes permitam compreender e agir sabendo que meninos e meninas são diferentes, mas que os seus direitos e as suas oportunidades devem ser iguais. Desde cedo, as crianças absorvem estereótipos que precisam de ser evitados através de estratégias lúdicas que promovam uma aprendizagem mais saudável.
A Educação Pré-Escolar é, por isto, um espaço privilegiado para a experiência de diferentes papéis que se fazem em todas as brincadeiras entre pares. Para isso os/as profissionais de educação devem estar preparados/as, enquanto figuras de referência, para a promoção destes espaços de igualdade e de equidade. A forma como meninos e meninas ainda são educados/as de forma diferenciada, contribui para a aquisição de preconceitos que podem vir a condicionar o seu comportamento. Continua a esperar-se que as meninas sejam mais sensíveis, mais delicadas, mais bonitas, mergulhando-as num universo cor de rosa, castrador, do qual os meninos são consecutivamente afastados. A coibição das emoções e a valorização de umas em detrimento de outras pode estar na base da repressão e de alguns comportamentos mais agressivos. Urge que, na infância, a educação facilite a experimentação de diferentes papéis e de diferentes significados, de forma livre, sem condicionamentos pelo seu sexo ou pelo seu género. No seu livro “Os meninos são a cura do machismo” a jornalista Brasileira Nana Queirós reflete sobre a forma como os meninos são educados e de como isso os coloca, também, em perigo. Nenhuma criança nasce violenta, mas o meio a que é exposta contribui para isso, cada vez mais. A forma como as crianças brincam e até os materiais que lhes são proporcionados pautam, já, uma enorme desigualdade, encaminhando as meninas para um universo de vulnerabilidade e os meninos para a luta de poder, pelo que estas diferenças precisam de ser anuladas através de uma educação mais refletida. As/os profissionais em educação de infância parecem estar pouco conscientes da influência que os estereótipos de género têm no comportamento das crianças, não reconhecendo, ainda, a importância de uma educação não sexista. Se durante a infância as crianças são expostas a modelos pouco saudáveis irão, com mais facilidade, reproduzi-los nos seus comportamentos e relações.
Educar para a igualdade de género, desde a infância, pode e deve ser um investimento nas políticas de prevenção da violência baseada no género, devendo, desta forma, investir-se na capacitação das pessoas que educam formal e informalmente, profissionais, famílias e comunidade.
Psicóloga, Sexóloga e Doutoranda em Estudos da Criança na Especialidade de Saúde Infantil
O feminismo e a interseccionalidade
Aliyah BhikhaA violência contra as mulheres manifesta-se de diversas formas e nos vários espaços das suas vidas. Crescemos e descobrimo-nos mulheres, algumas, apenas mulheres, outras, mulheres e negras. A identidade é algo que vamos construindo, e que é sempre afetada pela experiência de vida que cada uma tem.
Com bell hooks aprendemos que para as mulheres negras não existe uma separação entre o machismo e o racismo, que a luta feminista é também a luta anti-racista, e que ambas são também a luta contra um sistema capitalista que perpetua estas injustiças. E também, que muito facilmente foram esquecidas as mulheres negras na história, e a sua conquista de direitos foi tantas vezes secundarizada.
O progresso feminista obedeceu muitas vezes à mesma lógica dos progressos sociais, primeiro as pessoas brancas e só depois as pessoas negras, muitas vezes vimos a reprodução do patriarcado nos movimentos pelos direitos das mulheres.
Em Portugal, torna-se ainda mais grave perceber o abandono das mulheres negras, quando não existe nenhum marcador de pertença étnico-racial nos censos. Algumas informações vão surgindo, por estudos e pesquisas que nos mostram acima de tudo a necessidade gritante de informação. Não é possível avaliarmos o impacto do patriarcado e do racismo nas políticas públicas que se transportam para a vida das mulheres.
Em países como o Brasil ou os Estados Unidos é possível saber, através de dados estatísticos, que os trabalhos mais precários e mais vulneráveis pertencem às mulheres negras. Replicando modelos coloniais e opressores onde trabalhos como o serviço doméstico continuam com uma sobre representação destas mulheres.
Percebemos ainda a falta de informação que existe, quando falamos sobre a violência obstétrica e percebemos, sem sombra de dúvida, a invisibilização que as mulheres negras enfrentam. São consideradas mais fortes, mais resilientes, mais tolerantes à dor, perpetuando a violência médica que foi exercida sobre os corpos negros em nome da investigação e do desenvolvimento na saúde. É desapontante que a desumanização que lhes foi imposta perdure hoje e continue a justificar o desrespeito pelos seus direitos.
De acordo com o estudo feito pela SAMANE – Associação saúde das mães negras e racializadas em Portugal, mais de um quinto das mulheres negras sofreu violência obstétrica. Os dados dizem-nos ainda que 10,7% das mulheres não se sentiram respeitadas pelos profissionais de saúde durante a gravidez, 33,5% sentiram-se mesmo humilhadas e 41,1% negligenciadas.
O feminismo, enquanto movimento que luta pelos direitos de todas as mulheres, tem o dever de ser interseccional, de lutar por todas as mulheres, de ser contra todas as formas de opressão sobre qualquer mulher e de nunca deixar nenhuma mulher para trás. Devemos lutar de acordo com o que nos ensinou Audre Lorde: “Não seremos livres, até todas sermos livres.”
Estudante de Direito na Universidade Nova de Lisboa. Dirigente estudantil. Membro do coletivo As Feministas.pt e ativista anti-racista
Muitas mulheres são pobres. E são mais pobres que os homens.
Heloísa PeristaEsta é uma evidência confirmada pelos dados estatísticos mais recentes sobre o risco de pobreza ou exclusão social1. Em 2022, ano no qual 20,1% da população residente em Portugal estava em risco de pobreza ou exclusão social, as mulheres encontram-se entre os grupos sociais para os quais este risco é acrescido. Para além disso, as mulheres acumulam vulnerabilidades, tendo simultaneamente maior risco de pobreza ou exclusão social (20,7% face a 19,5% nos homens), maior risco de pobreza monetária (16,8% face a 15,9% nos homens), maior taxa de privação material e social severa2 (5,9% face a 4,6% nos homens) e maior intensidade laboral muito reduzida (5,8% face a 5,4% nos homens).
E, se as mulheres constituem um grupo social atravessado por heterogeneidades várias, dentro da população feminina existem subgrupos onde a vulnerabilidade ao risco de pobreza ou exclusão social se amplifica e a assimetria face aos homens aumenta. Este é o caso (ainda de acordo com a mesma fonte) das mulheres que vivem sozinhas, cuja taxa de risco de pobreza ou exclusão social é de 30,6% comparativamente com 19,5% dos homens que vivem sozinhos; ou das mulheres com 65 ou mais anos, cuja taxa é de 22,7% comparativamente com 17,5% dos homens no mesmo grupo etário. Essa vulnerabilidade, aliás, aumenta com a idade: uma em cada quatro mulheres com 75 ou mais anos estão em risco de pobreza ou exclusão social.
Num contexto em que o Governo identifica 86 mil famílias em situação de “indignidade habitacional”3, e em que se assiste a uma “degradação do acesso à habitação” em Portugal, face ao aumento dos preços das casas e das rendas, além da recente subida das taxas de juro4,importa dar atenção acrescida a esta dimensão.Com efeito, a sobrecarga das despesas em habitação tem também uma expressão genderizada, assumindo uma dimensão particularmente agravada para as famílias monoparentais, que na sua generalidade têm uma mulher como responsável. A taxa de sobrecarga das despesas em habitação assume 14,3% nas famílias monoparentais (face a 5% em média para o total de famílias)5.
A pobreza monetária das mulheres encontra-se, em larga medida, associada às elevadas e persistentes disparidades remuneratórias entre mulheres e homens: em 2021, as mulheres ganhavam (em média) menos 15,9% do que os homens6. Esta assimetria é fortemente ampliada quando se considera o valor das pensões: em 2022, as mulheres recebiam (em média) pensões que representavam menos 43% das dos homens7.
Mas as mulheres não são pobres apenas do ponto de vista dos seus rendimentos. As mulheres são também pobres do ponto de vista do tempo. Após as longas horas dedicadas pelas mulheres ao trabalho pago e ao trabalho não pago de cuidado e doméstico – sendo que a jornada de trabalho total das mulheres é, em média, em cada dia, superior à dos homens em 1 hora e 13 minutos -, o tempo que lhes resta para si próprias, um tempo a que possam chamar seu, para fazerem as coisas que lhes dão prazer e de que realmente gostam, é um tempo que claramente escasseia8. Por isso, as mulheres têm uma particular pobreza de tempo.
Apesar destas, e de outras, evidências, constata-se (e lamenta-se) que o Plano de Ação 2022/2025 da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza9 não contemple, de forma adequada e suficiente, uma perspetiva sensível ao género que transversalize a consideração das particulares vulnerabilidades das mulheres nos diferentes domínios de ação.
Socióloga, investigadora sénior no CESIS, as suas áreas de trabalho são vastas adotando uma análise sensível ao género. Autora de dezenas de textos e publicações a nível nacional e internacional, participando regularmente como oradora em seminários e conferências
(1) Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR) / EU Statisticsonincomeandlivingconditions (EU-SILC), 2023. Cf. Observatório Nacional de Luta contra a Pobreza (2023). Pobreza e Exclusão Social. Relatório 2023. Porto: EAPN Portugal. Acessível em www.eapn.pt
(2) O indicador de privação material e social reporta-se a itens de privação associados à alimentação, à pobreza energética, aos atrasos nos pagamentos de serviços essenciais, à possibilidade de ter uma almofada financeira para fazer face a despesas inesperadas, itens associados a sociabilidade e convivência social, etc..
(3) Expresso, 5 de outubro de 2023. Acessível em https://expresso.pt/economia/economia_imobiliário
(4) Banco de Portugal, Boletim Económico | Outubro 2023. Acessível em www.bportugal.pt
(5) Observatório Nacional de Luta contra a Pobreza, op. cit.
(6) GEP / MTSSS, Barómetro das Diferenças Remuneratórias entre Mulheres e Homens,2023. Acessível em www.jornaldenegocios.pt/economia/seguranca-social/detalhe/mulheres-tem-pensoes-43-mais-baixas-do-que-os-homens
(7) Relatório sobre a Sustentabilidade Financeira da Segurança Social. Cf. Jornal de Negócios, 13 de novembro de 2023. Acessível em
(8) Perista, Heloísa; Cardoso, Ana; Brázia, Ana; Abrantes, Manuel; Perista, Pedro (2016). Os Usos do Tempo de Homens e de Mulheres em Portugal. Lisboa: CESIS/CITE. Acessível em www.cesis.org
(9) Acessível em www.portugal.gov.pt
Da sabedoria ao estigma: o envelhecimento e o idadismo no feminino
Elena DuránO tempo e a passagem dos anos são fatores incontornáveis na nossa vida. O envelhecimento, que deveria ser uma jornada de sabedoria e crescimento, muitas vezes transforma-se numa experiência marcada pelo idadismo. O Idadismo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), “refere-se a estereótipos (como pensamos), preconceitos (como nos sentimos) e discriminação (como agimos) direcionados às pessoas, com base na sua idade” e as consequências deste tipo de discriminação são graves: regressão da saúde física e mental, menor expectativa de vida, recuperação mais lenta de incapacidade e, até, declínio cognitivo.
No entanto, é indiscutível que a forma como o envelhecimento e o idadismo impactam homens e mulheres diverge substancialmente e é fundamental explorar a razão por trás dessa disparidade e compreender os desafios enfrentados pelas mulheres à medida que avançam nas diversas etapas da vida.
O idadismo está interligado com outras formas de discriminação, nomeadamente o sexismo e o racismo, que representam as três das principais causas de preconceito em todo o mundo. Consequentemente, as mulheres podem enfrentar uma carga adicional de discriminação devido à conjunção da sua idade com o género.
Existem diversas formas de evidenciar essa relação, das quais destaco três. A primeira reflete-se nos padrões de beleza, ou seja, as expetativas sociais em relação à aparência física que, geralmente, divergem entre homens e mulheres, sendo que as mulheres enfrentam uma maior pressão para parecerem jovens, face à expressão “os homens são como o vinho” e “ficam mais charmosos com a idade e com cabelos brancos” enquanto uma mulher com cabelo branco “está a descuidar-se” (um exemplo, em si, de idadismo). A segunda manifesta-se nas expetativas culturais e sociais que, muitas vezes, atribuem às mulheres a maior responsabilidade no cuidado da família, tornando-as mais propensas a uma menor participação cívica, bem como a um aumento da solidão e do isolamento social. A terceira realça que as mulheres mais velhas podem estar sujeitas a um aumento dos riscos de violência de género, que incluem abuso emocional, financeiro e físico.
A diferença na forma como o envelhecimento impacta homens e mulheres torna-se evidente com o envelhecimento da própria população que afeta mais as mulheres devido à sua maior longevidade. Conforme o livro ” Como envelhecem os portugueses: Envelhecimento, saúde, idadismo”, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e Pordata, a maioria dos idosos que vivem sozinhos são mulheres, e de acordo com os Censos de 2011 são as mulheres que utilizam mais serviços coletivos de apoio social.
É preciso promover uma sociedade mais justa e igualitária. De forma que as mulheres possam viver a longevidade de uma forma saudável e feliz, sem a pressão social atual que aparece pela combinação do idadismo com o sexismo.
Compreender a interação entre o idadismo, o género e o envelhecimento é fundamental para valorizar e respeitar as contribuições de todas as pessoas, independentemente da sua idade ou género. É urgente o apelo para superar os preconceitos e construir um futuro em que todos possamos envelhecer com dignidade e igualdade.
Founder and CEO da 55+
Machismo, racismo e xenofobia: a multidimensionalidade da opressão
Mariana CarneiroAs desigualdades são estruturantes para o capitalismo, delas depende a sua sobrevivência. Desigualdades essas que não são naturais, decorrem de construções de cariz social, económico e cultural que estratificam as pessoas. Assim se estabelecem relações de poder que subjugam aquelas a quem é reconhecido estatuto inferior. O machismo, o racismo, a xenofobia servem o propósito de perpetuar as desigualdades. A ideia de superioridade justifica a exploração laboral, mas também outras formas de dominação e violência que recaem sobre as mulheres, sobre as pessoas racializadas, sobre as migrantes.
O racismo estrutural em Portugal, herança do seu passado colonialista, traduz-se em desigualdades de toda a ordem. Ainda que não detenhamos os dados étnico-raciais necessários para aferir a verdadeira dimensão do problema, as mais conceituadas organizações nacionais e internacionais alertam que as pessoas racializadas continuam a ser alvo de todo o tipo de discriminações, seja na educação, emprego, saúde, justiça, entre outros setores. A violência racista, e especialmente aquela que é perpetuada pelas próprias forças de segurança, é uma das manifestações mais atrozes deste flagelo. E continua a matar em Portugal.
Às pessoas migrantes é negado o direito a ter direitos. Respondem às demandas da economia nacional, engordam os cofres públicos, mas continuam a ser estigmatizadas e sujeitas a procedimentos que as criminalizam e fragilizam. A par de não consagrar o direito fundamental à imigração, a legislação nacional não é cumprida pelo próprio Estado português, e as migrantes ficam à mercê de patrões sem escrúpulos e máfias que as condenam a formas de escravatura moderna, despojando-as de toda a dignidade.
As vivências e as condições no feminino são diversas e estão em permanente mutação. Quem se constrói mulher, quem se faz mulher, é alvo de desigualdades e discriminações múltiplas, o que nos convoca a conhecer e combater a opressão na sua multidimensionalidade. No contexto de uma sociedade patriarcal e eurocêntrica, as mulheres, e particularmente, as mulheres racializadas e/ou migrantes, são submetidas a processos de silenciamento e invisibilização, que alimentam todo o tipo de abusos e atropelos aos direitos mais básicos. Impedidas de falar e de ser escutadas, são remetidas a um lugar de não sujeito. Potenciar e garantir que as suas vozes têm eco, que se multiplicam, combater todas as manifestações do capitalismo, articulando lutas e esforços, é o caminho para libertar as mulheres das violências estruturais reproduzidas na sociedade.
Socióloga do trabalho, especialista em Direito do Trabalho, Mestranda em História Contemporânea, ativista dos direitos dos imigrantes
VSBI e o surgimento do movimento "Corta a Corrente"
Mariana FernandesA tecnologia digital faz hoje parte de como nos relacionamos e comunicamos uns com os outros, tendo tido um papel importante durante a pandemia e unindo famílias e amigos num contexto de deslocação e isolamento.
As grandes empresas tecnológicas vendem todos os nossos dados para que outras criem anúncios e conteúdo personalizado ao utilizador, de forma a maximizar o período de interação com o ecrã e os seus lucros. Os conteúdos que mais são partilhados nas redes sociais são os mais lucrativos, que demasiadas vezes coincide com a propagação de desinformação e violência.
As crianças e jovens são presas fáceis neste mundo das redes sociais onde o amor próprio se conquista pelo número de likes e visualizações, pela pouca autenticidade das fotografias e padrões de beleza irreais, e pelas contínuas montras de vidas ideais/irreais. Na escola, o programa de Cidadania carece de ferramentas essenciais ao crescimento, como de protecção no uso das redes sociais, de manutenção de saúde mental e de uma educação sexual plena, que não aborde só as DSTs e métodos contraceptivos, ajudando a definir traços de relações saudáveis e padrões culturais de risco.
A Violência Sexual Baseada em Imagens (VSBI) é um fenómeno que tem vindo a crescer, definindo-se pela criação ou distribuição não autorizada ou consentida de imagens de teor sexual. As vítimas são predominantemente do sexo feminino e os perpetradores do sexo masculino. A VSBI interseta-se muitas vezes com outras formas de violência, nomeadamente com a violência doméstica e no namoro (ex. como forma de controlo coercivo através da ameaça de divulgação de imagens íntimas), mas também com exploração sexual (como a comercialização de vídeos de teor sexual divulgados sem consentimento em plataformas de mensagens encriptadas e sites de pornografia).
O grupo Grevio, grupo responsável pelo controlo da Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica segundo a Convenção de Istambul, salienta que “a violência de género contra as mulheres, na esfera digital pode ser particularmente acentuada por fatores como a deficiência, orientação sexual, filiação política, religiosa, origem social, estatuto migratório ou de figura pública”.
Muito se tem feito na área da narrativa de culpabilização da vítima, apostando-se predominantemente em campanhas de sensibilização direccionadas às mulheres (ex. Campanhas da GNR), cuja mensagem condescendente remete para “achavas mesmo que ele não ia partilhar?”. É importante salientar que a prevenção de comportamentos de risco nas redes sociais é importante mas, tal como a narrativa do “puseste-te a jeito” direccionada a vítimas de violação teve de ser combatida para deixar de ser aceitável, também aqui a Violência Sexual Baseada em Imagens e o surgimento do movimento Corta a Corrente abordagem deveria ser deixar de culpabilizar a vítima e de a responsabilizar por toda a prevenção.
Urge, por isso, sensibilizar os jovens e adultos, nomeadamente do sexo masculino, para a consequência que uma partilha não consentida pode ter na vida das mulheres (ex. perda de trabalho, necessidade de realocação, assédio online/offline, humilhação, perda de privacidade e liberdade, síndrome pós-traumático, ataques de pânico). A campanha feita pelo clube Rio Ave aquando do dia da Mulher de 2021 é um bom exemplo de um sucesso neste sentido.
Foi após a mediatização de um caso de VSBI que em 2020 criámos o movimento Corta a Corrente com o objectivo de lutar contra a normalização da prática, mas também de influenciar os decisores políticos a defender mais estas vítimas e fazer frente às grandes empresas tecnológicas. Redigimos uma petição que propunha que este crime fosse individualizado e elevado a crime público no contexto penal (dada a natureza pública já inerente), que as consequências para os perpetradores fossem alinhadas ao sofrimento das vítimas face à dimensão que o crime tem com a componente digital, e que se iniciasse o debate da responsabilidade e papel que as redes sociais, operadoras e órgãos de regulação têm/devem ter.
A petição foi entregue à Assembleia da República em Fevereiro de 2021 com mais de 8.500 assinaturas e, em Outubro de 2022, foi discutida em plenário, havendo quatro projectos de lei apresentados com sugestões de abordagem diferentes. Infelizmente, a proposta que foi aprovada por maioria não autonomizou nem tornou público a VSBI. Propôs uma pena máxima mais alta que a actual e introduziu alterações relativas ao papel das plataformas digitais. Nenhuma das propostas apresentadas contemplou a inserção da VSBI no plano escolar.
Embora alguns passos tenham sido dados, ainda estamos longe de alcançar os objectivos propostos pela petição que consideramos essenciais para a diminuição de casos de VBSI e melhoramento de resposta às vítimas.
Fundadora do Corta a Corrente, movimento cujo objetivo é sensibilizar os usuários das redes sociais para a gravidade do fenómeno da Violência Sexual Baseada em Imagens (VSBI) e pressionar as entidades competentes de forma a fortalecer o enquadramento legal do crime
Só o sim é sim
Sandra CunhaOs dados são aterradores. Uma em cada três mulheres e raparigas sofre de violência física ou sexual no mundo. Portugal não é exceção e a violação, uma das formas mais abjetas de violência contra as mulheres, tem aumentado consistentemente ao longo dos anos.
O ano de 2022 bateu o record de participações de violação em Portugal: 519 num ano, mais 31% do que no ano anterior. Em média 1,5 violações por dia. A esmagadora maioria das vítimas são mulheres (93,6%) e a esmagadora maioria dos violadores são homens (97,7%). É um crime, que apesar da neutralidade de género prevista no código penal, carrega ostensivamente a marca de género.
Mais aterrador ainda é sabermos que estes dados mostram apenas a ponta do iceberg. Na maior parte dos casos as violações não são denunciadas. A vergonha, a negação, a desconfiança nas instituições, o medo e a dependência hierárquica, económica ou emocional do agressor, que na maioria das vezes é um familiar ou pertence ao círculo próximo de conhecidos, impede muitas mulheres e raparigas de denunciarem o crime.
Os dados dizem-nos também que cerca de 30% dos condenados por violação ficam fora da prisão, sendo o crime de abuso sexual o mais desvalorizado (51% com pena suspensa). A impunidade desvaloriza o crime já que o ato de dispor do corpo de outrem sem consequências reforça no agressor o sentimento de posse sobre esse corpo ao mesmo tempo que remete para as vítimas o silêncio, o sentimento de culpa, a co-responsabilização.
Estas sentenças não acontecem por acaso. Na sua base está a ideia secular de que os corpos das mulheres existem para satisfazer os homens e que o silêncio significa sempre um sim. E de que elas, no fundo, até querem ou estavam a pedi-las.
Não se nega a evolução da legislação portuguesa, mas não chega. Eliminou-se a aberração da necessidade da existência de violência para a definição de violação, mas o código penal continua a possibilitar que se mascarem violações como abusos sexuais, crimes com uma conotação social bem “menos reprovável”. Persiste uma redação que abre a porta à desvalorização do crime e à responsabilização das vítimas. A questão do ónus da prova e do consentimento continua por resolver até porque ambos estão intimamente ligados. Na prática, são as vítimas, mulheres e crianças, que continuam a ter de provar que não consentiram. Os crimes com marca de género, contra as mulheres, são os únicos em que se exige que a vítima prove que não consentiu. Ninguém se lembra de exigir a quem foi assaltado na rua que prove que não consentiu o assalto. Nem assumimos que o seu silêncio significou consentimento.
A expressão do consentimento livre, conforme definida no artigo 36º da Convenção de Istambul, tem de ser claramente inscrita na tipificação do crime de violação, pois é na ausência de consentimento que radica a violência do ato e a natureza do crime. Só assim se pode deixar de responsabilizar as vítimas, de lhes imputar o ónus da prova, de lhes dizer, que no fundo, no fundo, elas quiseram e vai-se a ver, até provocaram. Só assim se podem eliminar sentenças como as dos acórdãos da «coutada do macho Ibérico», da «sedução mútua» ou a sentença de Gaia que mascarou uma violação de abuso sexual.
Mas deve-se ir mais longe e consagrar o carácter público ao crime de violação, reforçando a ideia de que este é um crime que não pode ficar por investigar e que a vítima não pode ficar sozinha. Não se pode aceitar que quem testemunhe uma violação ou dela tenha conhecimento não tenha o dever e o direito de denunciar o crime. Não se pode sobretudo aceitar que essa responsabilidade seja imputada exclusivamente à vítima e que ainda por cima se lhe diga que tem apenas seis meses para o fazer. Findo esse prazo, paciência. Não consagrar o carácter público à violação é perpetuar a mensagem de que a culpa é da vítima, é deixá-la resolver o problema sozinha.
Tal como no caso da violência doméstica, a consagração do caráter público ao crime, diz à sociedade que esta não é uma matéria do foro privado, que a vítima não tem de ficar sozinha, que este é um problema e uma responsabilidade coletiva.
A violação – a profanação do corpo de outrem sem o seu consentimento -é um dos crimes mais repugnantes contra as mulheres. Há séculos que as mulheres, sempre as mulheres, são dele vítimas. Ou existe a coragem para mudanças efetivas ou os corpos das mulheres vão continuar a ser meros sacos de porrada e de gozo para quem deles quiser dispor. Esta não é a sociedade nem o mundo que queremos para as gerações futuras. Haja coragem política.
Socióloga, investigadora no Observatório do Racismo e Xenofobia, doutoranda em Estudos de Género, sócia fundadora da FEM-Feministas em Movimento, membro do coletivo Por Todas Nós e da Associação Meninos do Mundo, ativista dos direitos das mulheres, das crianças e das pessoas LGBTQIA+.
Violência doméstica contra as mulheres: A perpetuação de obstáculos
Lúcia OsórioA Violência Doméstica é um problema complexo e real presente a cada dia na vida de mulheres e crianças em todo o mundo, atingindo-as de forma transversal e desproporcional. Atinge os seus quotidianos e todas as esferas das suas vidas: pessoal, familiar e laboral, impactando negativamente. Urge, embora os esforços realizados até à data, apostar na promoção da igualdade entre mulheres e homens e no combate à violência, por via não só da intervenção no âmbito desta problemática, assim como na prevenção primária do problema.
Trata-se de um fenómeno que, para além das repercussões a nível psicológico e físico para as vítimas, na sua esmagadora maioria mulheres, viola os direitos e as liberdades da pessoa humana.
No âmbito da intervenção e acompanhamento com mulheres vítimas de violência doméstica são visíveis as desigualdades e o patriarcado enraizado, ainda em pleno século XXI. Face ao mesmo, são diversos os obstáculos com que se deparam no dia-a-dia e que se somam às múltiplas violências que contra elas são exercidas, incluindo violência institucional. De facto, os esforços realizados no sentido de evitar a revitimação nem sempre se concretizam. A exemplo, veja-se o que acontece face à decisão de apresentar denúncia do crime; identificam-se vários momentos em que a vítima tem que recontar a sua história e reviver a sua situação de violência: momento de apresentação da denúncia; inquirição no âmbito da investigação criminal; possível inquirição no âmbito de diligência pelo Ministério Público; audição em diligência de declarações para memória futura, e em alguns casos, ainda assim, audição em sede de julgamento. Esta é uma situação que as revitimiza, cansa e desespera, levando-as muitas vezes a desacreditar no sistema, no geral. No mesmo sentido, o Estatuto de Vítima (Lei 112/2009, de 16 de Setembro) atribuído e que lhes consagra direitos e deveres, mostra o quão ineficaz este sistema é. Uma vez mais assiste-se a um fosso entre a previsão formal e a concretização material desses direitos.
Apesar do longo percurso percorrido na luta contra a discriminação e pela não violência, o que diariamente confirmamos é que longo é ainda o percurso quanto à efetivação dos direitos das mulheres.
Psicóloga, licenciada em Psicologia Criminal, Pós-graduada em Psicologia Jurídica. Técnica de Apoio à Vítima na Lisboa + Igualdade. Atendimento e Prevenção da Violência Doméstica, sob gestão da FEM. Perita no Laboratório de Ciências Forenses e Psicológicas Egas Moniz. Tem publicações nacionais e internacionais sobre vioência na intimidade nos relacionamentos homossexuais gays e lésbicos.
16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres
Elisabete BrasilCom início em 19911, a campanha internacional dos 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres decorre a cada ano entre o dia 25 de Novembro 2, 3 e o 10 de dezembro4. São 16 dias em que ativistas de todo o mundo adensam debate e caderno reivindicativo, prosseguindo demanda pelo fim da violência contra as mulheres. Reafirma-se que a manutenção do status quo é um atentado aos direitos humanos, denunciam-se graves violações aos direitos de meninas, raparigas e mulheres, exige-se tomada de posição firme por parte dos Estados, capaz de lhes pôr termo. É tempo renovado de dizer “BASTA!” à normalização social da violência contra as mulheres, ao patriarcado que a mantém e à ineficácia material do sistema que perpetua discriminações de género contra as mulheres. Discriminações que geram desigualdades e reproduzem, num contínuo temporal, transgeracional, violências multifacetadas que atingem, de forma transversal, milhões de mulheres em todo o mundo e lhes ceifam vidas.
Também em Portugal, essas discriminações e violências trespassam e visibilizam-se nos rostos, corpos, vidas e vivências das mulheres. Um país em que uma em cada 3 mulheres vive-a ou viveu-a na primeira pessoa. Vivem-na também por via do sofrimento e consequências nas vidas de quem mais amam, filhas, netas. Vivem-na pelas partidas (in)esperadas para casas de abrigo ou de emergência, única forma de salvaguardar integridade física, psicológica e até a própria vida e, ainda assim, vendo questionado e sob desconfiança quanto ao teor das suas denúncias, a sua capacidade para serem mães e de se reorganizarem em curto espaço de tempo, partindo do zero. Vivem-na por partidas sem regresso, de vidas roubadas, em lutos que se fazem de solidão, desespero, incompreensão e de injustiça. Em gritos de silêncio, mas também de questionamento: Porquê?
Que os 16 dias de ativismo que hoje se iniciam evidencie que o fim da violência contra as mulheres é pressuposto de igualdade e que está nas nossas mãos alcançá-la, materializá-la. Enquanto houver uma mulher violentada, a liberdade não será plena!
Elisabete Brasil. 25 de novembro de 2023.
Jurista, presidente da FEM – feministas em movimento.
(1) A Campanha dos 16 Dias de Ativismo foi lançada em 1991, por 23 mulheres de diferentes países, reunidas pelo Centro de Liderança Global de Mulheres (Center for Women’s Global Leadership – CWGL), com o objetivo de promover o debate e denunciar as várias formas de violência contra as mulheres no mundo.
(2) Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres. in, https://themis.org.br/16-dias-
de-ativismo-pelo-fim-da-violencia-contra-as-mulheres/
(3) A data homenageia também as irmãs Mirabal: Pátria, Minerva e Maria Teresa, ativistas políticas da
República Dominicana, assassinadas em 25 de novembro de 1960. Álvarez, Julia (1995). El tiempo de las
mariposas. Disponível em:
https://www.edu.xunta.gal/centros/ieschapela/system/files/lvarez,%20Julia%20%20-
%20En%20el%20tiempo%20de%20las%20mariposas.pdf
(4) Dia Internacional dos Direitos Humanos.
projeto financiado pelo programa CERV da Comissão Europeia
reune 11 parceiros e 7 países com o objetivo de melhorar a prestação de serviços de apoio às vítimas de violência de género e de violência doméstica (VBG/VD), e melhorar o sistema de avaliação das necessidades individuais das vítimas de VBG/VD.
Promovido pela Victim Support Europe, são parceiros nacionais do 2G4V, a FEM e a APAV
Notícias - a FEM divulga
No Canto da Rosa
A Fem divulga: Documentário e conversa "No Canto da Rosa" de Cláudia Rita OliveiraCompassos Feministas – Isabel Freire
Associações Federadas no Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (1924-1947) Isabel Freire edições Húmus sinopse Compassos Feministas apresenta ideários, protagonistas e…E depois da Habitação?
A FEM divulga a conferência "E DEPOIS DA HABITAÇÃO?" promovida pela Gebalis. Inscreve-te!
Comunicados FEM
Articular academia e ativismos, evidenciando e promovendo os feminismos e seu ativismo como ferramenta social e política para a concretização de direitos humanos e nestes, particularmente o das mulheres e raparigas.
Movimentos Sociais
A Associação FEM nasce no verão de 2019. Pessoas com as mais variadas experiências convergem em acreditar ser possível um feminismo atuante, inclusivo, democrático e muito atento à realidade (e às violências) vivida por cada rapariga e cada mulher.
O objetivo do projeto é a criação e manutenção em funcionamento de uma Estrutura de Atendimento a Vítimas de Violência Doméstica e de Género no Concelho de Lisboa.
Disponibilizamos os serviços de atendimento e acompanhamento especializado a vítimas de violência doméstica e de género. Apoio psicossocial, psicológico e informação jurídica.
LISBOA + IGUALDADE